
Profundo e insondável
E se dentro de nós respirasse uma galáxia infinita de memórias e sonhos. Sentimentos como o medo e o desejo, ou até desejos que são medos ou medos que são desejos, amores e agressividades. Escondidas dentro de nós, mas a trespassarem-nos os gestos e os pensamentos, podem estar perceções como toques ou cheiros, imagens, músicas… palavras e fantasmas.
E se nós fôssemos muito mais e para além de uma fina camada superficial de racional, de controlo, de lógica e de consciência?
A este porão aparentemente insondável de bagagem da nossa vida, ao qual temos acesso apenas por um jogo de sombras quando algo de surpresa emerge das profundezas voando sobre a censura, Sigmund Freud chamou inconsciente. Não sendo o primeiro a pensá-lo, mas o primeiro a dar-lhe a devida consideração e tempo de estudo, Freud usou a conhecida imagem do iceberg para definir a existência de um mundo invisível, desconhecido e submerso do qual só vemos uma pequena parte a cintilar na luz do sol. A partir disso, dedicou toda a sua vida a teorizar sobre como funcionava, a aprofundar maneiras de aceder a ele, a perceber a sua função e influência na nossa vida quotidiana e na nossa saúde física e mental. Criou um caminho para chegar ao inconsciente a que chamou psicanálise, propondo um processo de escuta ativa e atenta de associações livres, por parte de um outro cuidador, atento e treinado não para censurar, mas sublinhar e espelhar, revelando o nosso íntimo.
Para aprofundar o mistério deste descontrolo em nós, algum tempo depois, o seu discípulo Carl Jung sugeriu a existência de um inconsciente coletivo, como se a nossa herança enquanto espécie transportasse para as várias culturas símbolos, imagens e significados comuns, inconscientes e não aprendidos, mas enraizados profundamente no nosso pensar e no nosso esquecer. Fascinante e bela, ao mesmo tempo aterrorizadora, esta visão de que existe algo que nos guia internamente mas que ao mesmo tempo nos escapa, contrasta com a nossa atual procura de saber, eficácia e eficiência.
Resolver tudo com a vontade consciente, com a definição de objetivos, com a estatística e por método, parece uma ideia quase ridícula face ao que tanto nos ultrapassa e do qual apenas vemos vislumbres em sonhos, enganos ou intuições.
Já no tempo de Freud e Jung estas ideias soaram a rebeldia e quase loucura face ao racionalismo positivista dominante. E, embora hoje em dia estejamos mais habituados à incerteza, ao vazio de estrutura e mais abertos ao novo e incontável, quando nos propomos olhar para este mar interior infinito, sentimo-nos estranhos, dizemos que não temos tempo nem espaço para isso, chegamos a negar até o seu poder sobre nós.
Por vezes mentimos a nós mesmos e dizemos que não queremos saber. Queremos recusar ou dominar a sua influência sobre o que somos sem nunca verdadeiramente o conseguir.
No entanto, se não saborearmos este mistério que habita o inconsciente, se não nos deixarmos ir e provarmos o sal do seu luto, o calor do seu desejo, o ranger de dentes da sua fúria, o arrepio do seu terror, corremos o risco de ficar aquém de nós próprios, esquecendo o estranho familiar que está do outro lado do espelho e até, por vezes, adoecer de dor.
Porque só sendo semente soterrada podemos ser primavera…
Marisa Lourenço
Psicóloga e Psicoterapeuta
Rubrica InConsciente na Revista InSentia