Eros

Eros

É verão e tudo pulsa de vida, de crescimento, de expansão, de comunicação e de entrega. O calor alimenta-nos esta vontade de viver, esta pulsão de construção e de criatividade. Por esta altura, o amor é visível e palpável, conduzindo-nos com uma força inexplicável e a atrativa de ação, de experimentação, de pôr o “pé na água” e mergulhar. Eros surge em nós, infantil, travesso, de sorrisinhos… a deslumbrar-se
com as coisas novas do caminho, a pulsar de desejo e de querer.

Esta pulsão, construída na fronteira entre o corpo e a alma, direciona todo o nosso crescimento. Direciona logo que nascemos o desejo de nos alimentarmos e conhecermos o mundo com a boca, de controlar os esfíncteres e encontrarmo-nos no “Não” mais perto dos dois anos, de reconhecermos o outro como um ser total e de nos darmos em amor à nossa mãe e ao nosso pai, entrando num triângulo amoroso de identificação. Mais tarde, ao entrar para a escola, orienta o desejo de nos embrenharmos em saber e, quer nos custe quer não, de irmos a partir da adolescência cambaleando ao encontro do prazer de sermos nós próprios de corpo e alma.

Freud definiu esta corrente de energia de crescimento como Pulsão de Vida. Com a sua conceção biológica, da fisiologia, da medicina, ele criou este conceito como um ponto de partida perfeito para fazer a construção da ligação entre corpo e mente. Vindo do corpo biológico, o impulso é burilado no limiar da mente transformando-se em desejo, construindo-se assim corpo e mente a partir desta mesma pulsão.

Orientado ele próprio por torrentes amorosas de pulsão de vida, de desejo de saber, desejo de ajudar, desejo de auto-conhecimento, de se superar em relação a preconceitos e tetos de vidro, Freud nunca esmoreceu perante as críticas e injúrias. Reconheceu e deu um papel central na sua teoria à presença desta pulsão de vida, que é erótica porque de prazer se trata, desde o primeiro ao último dia de vida, tanto no esquimó como no aborígene, tanto no homem como na mulher, tanto no adulto como na criança. De facto, para Freud quando nascemos estamos na fase oral em que a nossa zona erógena é a boca, passando mais tarde para a fase anal em que o controlo ou descontrolo nos fascina, chegando depois à fase do Complexo de Édipo em que se testam os limites da sexualidade, ainda não genital, mas já reconhecendo as diferenças sexuais, ficando depois em suposta latência para nos dedicarmos ao aprender até se manifestar, a partir da adolescência, com o fogo da sexualidade e a doçura da reprodução.

Toda esta energia, que se vai materializando com o crescimento, nos percorre as veias para sempre e ganha ainda mais vida e brilho no esplendor do Verão quando comemos a vida e os gelados, ouvimos os sons suaves e reconfortantes da natureza, quando fazemos caminhadas ar livre, damos mergulhos no mar e na nossa criatividade, nos deitamos na relva e nos deleitamos com carícias do sol, do vento ou dos que nos amam.

Eros brinca connosco especialmente no Verão. Brilha-nos nos olhos enquanto planeamos aventuras e salta à nossa frente em cada passo do caminho. O seu irmão Tanatos, a Pulsão de Morte, brinca às escondidas com Eros e connosco, apontando-nos o nirvana, o parar, o morrer, o hibernar, o destruir, o deixar explodir, o desvitalizar… Pois quanto maior é a luz mais profunda é a sombra, quanto maior a idealização maior é a queda, quando maior é a fome, maior é a fúria por não a colmatar. Rendido perante a dor da guerra, Freud teve de reconhecer, perto do fim da sua própria vida, que o desejo de morte também nos acompanha e dele não devemos fugir se queremos reconhecer verdadeiramente a vida.

Mas só por momentos Tanatos nos cativa, pois no Verão Eros impera!

Marisa Lourenço
Psicóloga e Psicoterapeuta
Rubrica InConsciente na Revista InSentia

Profundo e insondável

Profundo e insondável

E se dentro de nós respirasse uma galáxia infinita de memórias e sonhos. Sentimentos como o medo e o desejo, ou até desejos que são medos ou medos que são desejos, amores e agressividades. Escondidas dentro de nós, mas a trespassarem-nos os gestos e os pensamentos, podem estar perceções como toques ou cheiros, imagens, músicas… palavras e fantasmas.


E se nós fôssemos muito mais e para além de uma fina camada superficial de racional, de controlo, de lógica e de consciência?
A este porão aparentemente insondável de bagagem da nossa vida, ao qual temos acesso apenas por um jogo de sombras quando algo de surpresa emerge das profundezas voando sobre a censura, Sigmund Freud chamou inconsciente. Não sendo o primeiro a pensá-lo, mas o primeiro a dar-lhe a devida consideração e tempo de estudo, Freud usou a conhecida imagem do iceberg para definir a existência de um mundo invisível, desconhecido e submerso do qual só vemos uma pequena parte a cintilar na luz do sol. A partir disso, dedicou toda a sua vida a teorizar sobre como funcionava, a aprofundar maneiras de aceder a ele, a perceber a sua função e influência na nossa vida quotidiana e na nossa saúde física e mental. Criou um caminho para chegar ao inconsciente a que chamou psicanálise, propondo um processo de escuta ativa e atenta de associações livres, por parte de um outro cuidador, atento e treinado não para censurar, mas sublinhar e espelhar, revelando o nosso íntimo.

Para aprofundar o mistério deste descontrolo em nós, algum tempo depois, o seu discípulo Carl Jung sugeriu a existência de um inconsciente coletivo, como se a nossa herança enquanto espécie transportasse para as várias culturas símbolos, imagens e significados comuns, inconscientes e não aprendidos, mas enraizados profundamente no nosso pensar e no nosso esquecer. Fascinante e bela, ao mesmo tempo aterrorizadora, esta visão de que existe algo que nos guia internamente mas que ao mesmo tempo nos escapa, contrasta com a nossa atual procura de saber, eficácia e eficiência.

Resolver tudo com a vontade consciente, com a definição de objetivos, com a estatística e por método, parece uma ideia quase ridícula face ao que tanto nos ultrapassa e do qual apenas vemos vislumbres em sonhos, enganos ou intuições.


Já no tempo de Freud e Jung estas ideias soaram a rebeldia e quase loucura face ao racionalismo positivista dominante. E, embora hoje em dia estejamos mais habituados à incerteza, ao vazio de estrutura e mais abertos ao novo e incontável, quando nos propomos olhar para este mar interior infinito, sentimo-nos estranhos, dizemos que não temos tempo nem espaço para isso, chegamos a negar até o seu poder sobre nós.

Por vezes mentimos a nós mesmos e dizemos que não queremos saber. Queremos recusar ou dominar a sua influência sobre o que somos sem nunca verdadeiramente o conseguir.

No entanto, se não saborearmos este mistério que habita o inconsciente, se não nos deixarmos ir e provarmos o sal do seu luto, o calor do seu desejo, o ranger de dentes da sua fúria, o arrepio do seu terror, corremos o risco de ficar aquém de nós próprios, esquecendo o estranho familiar que está do outro lado do espelho e até, por vezes, adoecer de dor.

Porque só sendo semente soterrada podemos ser primavera…

Marisa Lourenço
Psicóloga e Psicoterapeuta
Rubrica InConsciente na Revista InSentia