Luto e metamorfose

Luto e metamorfose

Tão certas na vida são as perdas…

No entanto, como é hoje fácil para nós fugirmos ao pensamento sobre elas. Quantas coisas enganadoramente nos anestesiam e ilusoriamente nos teletransportam por cima da dor da perda. Compras, drogas, jogos, apostas, músicas, álcool, séries, objetivos, prazos, obrigações, desafios, carroceis … é só escolher! É para menina e para o menino!

Achamos que se torna quase uma questão de sobrevivência e no mundo atual não querermos pensar na possibilidade de perdermos quem mais amamos, ou perdermos algo que valorizamos, incluindo ideias, ideais, empregos ou estatutos. Como somos humanos, orgânicos e sensíveis, mais cedo ou mais tarde, as perdas inevitavelmente cruzam o nosso caminho. E quando nos apercebemos delas, quando olhamos e vemos que o objeto amado (seja ele qual ou quem for) já não existe, chegamos ao luto.

O luto é muito doloroso e, tal como nos descrevia Freud no texto “Luto e Melancolia”, envolve grandes afastamentos daquilo que constitui uma atitude normal perante a vida. Implica a perda de interesse no mundo externo e em todas as atividades que não estejam relacionadas com o amor perdido e a dificuldade de encontrar um novo objeto de amor.

Como se deixa de amar? Como deixamos ir quem perdemos ou se perdeu de nós? Nos dias de hoje o mais certo é ouvir: “Força! Tens de superar! Tens de ultrapassar! Não penses mais nisso… Já me cansas de tanto falar disso. Não te posso ver chorar!”

Muitas vezes parece mais fácil e adequado pôr debaixo do tapete, pintar de cor-de- rosa por cima, dourar com a pilula mágica, secando a mais teimosa lágrima. Congelar e dizer que esquecemos. Nesta corrida, parece que não nos podemos dar ao luxo de desmoronar e sentar na beira da estrada.

É certo que nunca abandonamos de bom grado quem amamos… Não é fácil retirar tanto amor de um alvo bem delimitado. Durante um tempo enfrentamos o luto…Amando! Confiando que, aos poucos, a dor seja superada. Não podemos sequer pensar ser possível trancar a voz de quem chora a perda do objeto amado. Deixamos a dor começar a destilar por cada poro, saindo gota a gota, lágrima a lágrima. Às vezes até achamos que se começarmos a chorar não vamos conseguir parar.

Deixar chover um pouco no Outono, passar à fase do dilúvio no Inverno. Depois da água e do sal, o sol e a vida hão-de deixar a terra perfeita para as plantas romperem na Primavera e darem novos frutos no Verão. Ciclo eterno.

Mas é preciso ter cuidado! A perda pode tornar-se mais avassaladora e eternamente difícil quando insistimos em agarrar-nos à personagem mais que perfeita de um outro idealizado. Aí, mais cedo ou mais tarde, a falha e o defeito são integrados em nós e podem começar a manifestar-se e até se tornarem tão audíveis que se revelam incapacitantes. Freud falou-nos da melancolia contribuindo para a compreensão do mecanismo de um luto patológico, que nos lembra a depressão. Nesta é essencial uma ajuda externa, neutra, regular, indestrutível e acolhedora, como diz o mestre psicoterapeuta Coimbra de Matos.

Abordemos sem terror o trabalho do luto que nos transforma, mesmo depois de nos diluir e voltar a montar, metamorfoseando-nos já borboletas para voarmos mais uma vez. Este luto saudável não deixa de ser duro, talvez até mais duro, pois assume a verdade do amor, incluindo as suas contradições. O horror da perda de quem se ama, a quem nos damos, assume também a perda das ilusões, dos castelos no ar. Este luto saudável faz-nos assumir a ambivalência dos nossos sentimentos, amores e agressividades entrelaçados, para nos transportar para o estaleiro de uma pessoa em construção, terreno confuso, lamacento, mas criativo, de quem está aberto a aprender com o futuro.

Marisa Lourenço
Psicóloga e Psicoterapeuta
Rubrica InConsciente na Revista InSentia

Desgelo

Desgelo

É Primavera e as chuvas acordam suavemente as sementes internas… Ainda desvitalizados pelo frio do inverno, sonhamos com o futuro e marcamos as férias.

Como sair deste torpor do inverno e passar diretamente à ação? Qual a fórmula secreta para chegarmos a um outro universo, quando o nosso se modifica e não nos permite ficar ali onde estamos, só protegidos e seguros sob o jugo da terra fofa e pesada? Como poderemos fazer a transição do tempo de parar, para o tempo da aventura, de viver a Primavera, de nos apresentarmos ao mundo e assumirmos o direito de estar ali?
Segundo Okun, investigadora em psicologia, todo o desenvolvimento é um processo dinâmico, com um movimento pelas fases, em que cada transição se faz com uma adaptação procurando o equilíbrio, gerindo os défices que podem ser maiores, se é menor o grau de semelhança entre o ambiente pré e pós-transição.

A transição nem sempre parece ser fácil mas é essencial ao crescimento, parecendo quase um novo nascimento. Se consideramos que o desenvolvimento se faz por fases, tal como postularam Freud ou Piaget, poderemos pensar que cada passagem a um novo estádio, implica este processo, estranho e ambíguo, mas mágico, da transição.

Na transição saímos da rigidez de um estado passado, para um processo surpreendente em que há coisas que parecem não fazer muito sentido, nem estar ainda certas. Tal como o desgelo na Primavera, este pode ser um processo lamacento, confuso e até feio, mas é o que permite o derreter da neve e do gelo para chegar ao prado verdejante e florido.


Alguns autores que estudaram o processo de transição classificam as transições em categorias. Dizem que podem ser previsíveis e não previsíveis e voluntárias ou não voluntárias. Quando acontece uma crise ou catástrofe geralmente trata-se de uma transição não antecipada e involuntária, perante a qual ficamos perplexos e às vezes tristes. Por vezes, chegamos até a pôr em causa a nossa força e vontade de viver. Mas isso não significa que mesmo as crises não nos permitam também um crescimento e evolução.

A Primavera, tal como a adolescência, são transições previsíveis, sonhamos com elas até as desejamos. Mas, ao chegarem, implicam a opção pela possibilidade de viver em pleno, encontrar os nossos desejos e, com toda a nossa capacidade de adaptação, pô- los em prática.
Aqui não se trata só de sonhar, implica mesmo viver e, como diz a canção… “Viver é melhor que sonhar”. Na transição os dias são nossos e mesmo na incerteza temos de avançar com os nossos pés acreditando que vai haver chão, vai haver segurança e competências internas para lidar com os desafios do desconhecido externo e também com a nova pessoa que somos.


Numa crise, tal como uma doença, um desastre, uma perda profissional ou pessoal, a adaptação tem de ser maior e a rigidez tem de descongelar quase completamente. Temos de lançar raízes mais fundas que nos agarrem à vida, largar partes de nós e abrir caminhos na terra lamacenta para novos caules e folhas. Sobretudo aí, temos de saber ouvir e sentir a vida a pulsar dentro de nós, respirar dando alento a essa força e avançar contando por vezes também com outros que nos segurem e suportem.


Embora nenhum modelo sirva para todos os indivíduos no momento de lidar com a transição, alguns autores como Hopson e Adams estudaram uma sequência de fases do processo da transição. Começa com a imobilização ou choque inicial, depois a minimização em que se vai negar ou minimizar a mudança, a dúvida de si próprio e da sua capacidade, o deixar ir a situação e começar a poder olhar para o futuro, o teste em que com energia se sente possível o lidar com a situação. Finalmente, dá-se a procura de significado e de entender como os acontecimentos são diferentes, dando-se depois uma interiorização que pode implicar uma mudança de valores e de estilo de vida, com um crescimento emocional, espiritual ou cognitivo.


Apesar de ser possível de ser observada e estudada, como num tubo de ensaio, a forma como cada um de nós lida com a mudança e a transição é muito específica e pessoal pois é determinada por miríades de fatores individuais e ambientais subtis, tais como a experiência de vida, a maturidade ou o auto-conceito.


Resta saber onde pulsa a nossa semente interna, a quantidade de humidade e calor que precisamos para lançar raízes, qual o grau de coragem que temos para fazer nascer folhas para procurar a luz do sol… seguir a nossa natureza e viver a Primavera.


Marisa Lourenço
Psicóloga e Psicoterapeuta
Rubrica InConsciente na Revista InSentia

O Amor

O Amor

O amor nasce desde que somos sonhados, ainda sementes, no útero da nossa mãe e é continuamente desfragmentado, reestruturado e atualizado na dança de cada nova relação, até ao segundo em que o último impulso nos percorre.

O amor olha-nos, reconhece-nos nos sulcos da nossa íris, no grão da nossa pele… espelha-nos, define-nos. Um colo quente e pensante que nos limita e nos dá sentido, onde nós próprios nos aprendemos a pensar e reconhecer. Um colo onde o que sai de nós é desejado, recebido, pensado e traduzido para ser reintegrado e nos construir.

Só o amor nos permite sentir a força da vida, o prazer que nos faz ser… o próprio amor, pois precisamos de aprender o amor com um Outro, para que possamos também amar e amar-nos.

Amor não é o que nos mascara com o peso das idealizações, não é o que nos condena a cadeias de dor e silêncio, não é o que nos anestesia e aliena de nós próprios, não é o que nos curva a espinha para repetidamente nos abandonar, não é o que nos saqueia o tempo congelando-nos no segundo antes de ser feliz…

Amor é o que nos segura firmemente, aconchega e sossega e, depois de mimetizado de forma indelével no nosso coração, nos permite afastar para ampliar, abanar, progredir, cair, crescer, sabendo que podemos sempre voltar a encontra-lo, pelo menos dentro de nós.


Marisa Lourenço | Fevereiro, 2016

Quentinho

Quentinho

Incrível como é no mais gélido dia de Inverno que conseguimos sentir em que é que consiste a essência do calor. É aí que mais o desejamos e valorizamos, estando dispostos a fazer o que for preciso para o ter, por dele sentirmos necessidade. Será que precisamos de sentir o contraste para nos darmos conta do valor de algo na nossa vida e das nossas reais carências?

Será que só na doença valorizamos a saúde, que só na tristeza valorizamos a alegria, que só na guerra valorizamos a paz, que só na crise valorizamos a oportunidade de evolução, que só na solidão valorizamos o amor? Parece que só algum grau de desconforto nos faz agir e mudar… Não um desconforto debilitante em que a dor nos desvitaliza, pois esse nem nos permite mover ou crescer. Esse desconforto total tolda-nos o pensamento e a ação e tira-nos, mesmo que momentaneamente, da direção da vida.

Mas um incómodo que não se cala perante aquilo que não nos serve e nos faz mover e mudar. Pode ser um sinal de alerta que começa fraco e aumenta até se tornar insuportável, um choque que nos faz levantar de repente e abrir bem os olhos ou então o desejo de algo que se consegue vislumbrar à distância. Este contraste não precisa de ser físico, ou químico, também pode ser emocional e pertencer ao sentir, pode ser cognitivo e pertencer ao saber.

No entanto, temos de ter tempo e lugar para que a mudança aconteça. Temos também de ter uma estrutura suficientemente flexível em que a mudança possa caber, ou possa ir encontrando aos poucos o seu lugar. Embora muito influenciados pela cultura, somos ainda parte da natureza e respondemos sobretudo às suas leis, em que tudo tem o seu tempo, os seus ciclos e a sua maturação.

Tudo isto nos lembra antigos adágios como “A fome e o frio metem a lebre ao caminho”. Somos seres vivos, orgânicos e não automáticos, respondemos ao meio e a impulsos internos, às necessidades que se vão criando e que nos motivam a mover, que surgem do contraste, da falta, da dissonância.

A teoria psicanalítica de Sigmund Freud falava na necessidade de descarga de dois tipos de pulsões básicas: a pulsão de vida, da procura do que nos alimenta e a pulsão de morte, mais agressiva. Essas pulsões, inatas e biologicamente determinadas são consideradas, segundo esse autor, a fonte da energia psíquica e geradoras de todo o comportamento.

É possível olhar para a motivação (do latim movere), ou para o que nos move, de um modo mais diferenciado como fez, por exemplo, Abraham Maslow que propôs uma classificação das diferentes necessidades em pirâmide, em que aparecem sequencialmente cinco tipos de necessidades – necessidades fisiológicas, necessidades de segurança (física e psíquica), necessidades socias (relacionamentos e participação), necessidades de estima (autoconfiança) e necessidades de autorrealização. Só preenchendo de alguma forma as necessidades mais básicas se pode perceber ou pensar em preencher as necessidades mais elaboradas e de crescimento. Assim, aparentemente a nossa motivação vai-se orientando para objetivos cada vez mais ligados ao desenvolvimento pessoal e mais distantes das pulsões básicas de vida ou morte.

Embora a Motivação seja um tema muito pensado e estudado, por estes dois e por muito mais teóricos, o que nos move ainda pertence um pouco ao reino do mistério, nem sempre é assim tão linear ou consciente.

“Se estás mal muda-te”… muda o mundo, muda-te a ti, muda o outro. Mudar o outro é quase sempre uma tarefa difícil, embora nos apareça sempre como uma ilusão tentadora quando entramos no jogo do muda o outro que eu não mudo. Mudar-nos a nós próprios, e seguindo o nosso próprio direcionamento interno, parece ser um ato de grande poder mas também uma árdua empreitada.

Aproveitemos o quentinho deste Natal idealizado com bolas coloridas a adivinhar a possibilidade de frutificar da primavera e com luzes cintilantes a lembrar os raios de sol do estio, para sonharmos com a possibilidade de nos movermos para o nosso melhor e para um mundo melhor e para fazermos planos de ação e de mudança para o ano novo que se avizinha.

Marisa Lourenço
Psicóloga e Psicoterapeuta
Rubrica InConsciente na Revista InSentia

Olhar-se a partir de dentro…

Olhar-se a partir de dentro…

No Olha-Te existe uma sala ampla e polivalente que magicamente se transforma num acolhedor gabinete de psicologia com duas poltronas e um jardim em frente. Neste espaço, é possível olharmos a vida e a natureza… é possível olharmos para nós próprios a partir de dentro.

Olhando o jardim, favorável à escuta empática, tudo pode ser procurado, refletido e transformado. Ali, em relação terapêutica, podemos viajar entre camadas de dor e sonhos, podemos olhar as espirais de relações da nossa vida, podemos projetar destinos mais ou menos férteis.
O jardim pode estar ocre e enferrujado pela solidão do outono, despido, retorcido de zanga e molhado de lágrimas no inverno, verde de esperança na primavera, colorido por brincadeiras de crianças no verão. Tudo neste espaço do apoio psicológico do Olha-Te procura despertar-nos para nós próprios, mesmo quando a crise se instala, sobretudo nesse momento, mas também quando é preciso traçar um futuro simplesmente FELIZ.

Tendo como base a psicoterapia de orientação psicodinâmica, que utiliza os conhecimentos da psicanálise, a intervenção é orientada para um progressivo aprofundamento na descoberta pessoal e para o desenvolvimento do bem-estar e da auto-estima.

Neste contexto, lida-se com as questões mais específicas dos doentes oncológicos e dos seus familiares. Abordam-se insatisfações e incertezas face aos processos de tratamento, necessidades ao nível da reorganização das relações familiares, preocupações com as mudanças na aparência física, ansiedades face aos resultados de exames, confrontos com a dor física e mental, com o processo do luto.

Enfrentam-se medos, tristezas, cansaços…comemoram-se progressos, sucessos e superações.

Toda esta intervenção de cariz psicológico procura ser realizada em estreita interação com as restantes atividades do projeto, acompanhando cada caso de forma integral e aprofundada.


Com a flexibilidade que se torna essencial, face ao ritmo da disponibilidade, determinada por diferentes variáveis como a recuperação das intervenções cirúrgicas, os tratamentos de quimioterapia ou os momentos de diagnóstico, são mantidas sessões de cerca de uma hora com uma frequência tendencialmente semanal. Procura-se sobretudo a expressão das emoções como forma de promoção da saúde e qualidade de vida do doente oncológico.


Marisa Lourenço, Psicóloga e Psicoterapeuta